Rayane Penha, jornalista, cineasta, mulher negra, ativista da luta antirracista e coordenadora de comunicação da Utopia Negra Amapaense. Foto: Caio Coutinho
Nos últimos anos venho acompanhando o crescimento do "fenômeno" de pessoas brancas querendo ser tudo, menos pessoas brancas. No desespero de fugir da herança nada agradável, de um passado vergonhoso vivido por pessoas brancas, as atuais começaram a afirmar que são muitas coisas para não serem brancas, incluindo serem pessoas negras.
Fiquei me perguntando o que passa pela cabeça dessas pessoas: o que é ser uma pessoa negra para além da fantasia delas sobre ser uma pessoa negra em um país como o Brasil?!
Analisando todas as pessoas que vi fazerem isso percebi que existia ali um incômodo com a nossa chamada "ascensão" quando pessoas que para elas sempre tiveram baixa auto estima, sempre foram historicamente invisibilizadas, que não eram a opção do afeto… Quando nós que lutamos para romper cada barreira dessas “ocupamos” esses espaços, isso incomodou e vi as pessoas brancas se movimentarem para mais uma vez roubar o que nós construímos para nós, porque aqui não falo dos espaços historicamente brancos, construídos por e para eles, mas dos espaços que nós criamos para nós, para ser refúgio, para nos aquilombar da violência que o racismo nos obriga a viver quando convivemos com os brancos. Pessoas brancas se dizendo negras para adentrarem nossos espaços, para nos roubar o que nos custa suor, sangue e muitas lágrimas, literalmente cada uma dessas coisas.
Recentemente vivi um processo de fazer curadoria para um projeto que iria beneficiar pessoas negras, de 10 inscrições que eu pegava para analisar, pelo menos 6 eram de pessoas brancas afirmando serem negras, todos os dias eu chorava porque talvez muitas pessoas negras não tinham nem conseguido realizar as inscrições, por falta de acesso a essas oportunidades, enquanto um monte de gente branca estava ali querendo tomar mais aquela oportunidade para si. No início deste ano eu ganhei um prêmio com o meu trabalho dentro do cinema, o prêmio era voltado para realizadores negros, eu tive que ouvir de uma mulher branca que trabalhava comigo em um projeto, que ela tinha se inscrito no prêmio, mas que não tinha passado e ela achava que ela merecia o prêmio, não eu. Eu fiquei dizendo para mim mesma que aquela pessoa medíocre e sem talento não iria me abalar, porém se tem um coisa que é difícil é superar as violências que o racismo nos causa, no meio do turbilhão que foi aquele momento, de olhar para minha trajetória, uma mulher negra vinda da beira de um rio do interior do Amapá que ousou fazer cinema AQUI estava ali tendo seu trabalho premiado, nem eu achava que merecia, chorava achando que a qualquer momento eu iria acordar, que não seria verdade, que eu não seria capaz, diante de tanta auto sabotagem foi fácil acolher o argumento de mais uma pessoa branca indignada com termos sucesso, talento, com alcançarmos lugares que eles nunca imaginaram para nós. Graças a Oxum eu me salvei, ela que está comigo desde o início, graças a minha orixá eu me limpei daquele momento e segui, mas a gente não supera porque eles continuam lá existindo e tentando nos abalar, eu nunca consegui comemorar essa conquista, pairei no medo, na angústia do medo até de compartilhar as minhas conquistas em rede social, com medo do que eu iria ouvir novamente, das energias cruéis emanadas a mim pelo simples fato de eu estar ali vivenciando espaços e conquistas com o meu trabalho.
Será que na fantasia de se colocarem como pessoas negras, as pessoas pensam em suas trajetórias? Eu odeio afirmar isso, mas sim, o ser negro no Brasil é atravessado pelo lugar da violência, não importa o quanto a gente fuja disso, o quanto de acessos uma pessoa negra possa ter, o racismo vai estar ali, de forma estrutural, velado, direto, escancarado como a bala que nunca erra nossos corpos.
Pensei muito sobre escrever esse texto, sobre as críticas, sobre o quanto é difícil para muitas pessoas negras se reconhecerem como negras, terem orgulho disso, mas eu enquanto uma mulher negra da pele clara achei injusto ver pessoas brancas se reconhecendo em um lugar no qual elas nunca foram colocadas e nunca saberão o que é, eu que sempre fui chamada de moreninha, mulata, cor de jambo, de mameluca, nome que eu nunca tinha escutado falar, mas um professor da faculdade resolveu me chamar assim em frente de toda a turma por conta da cor da minha pele e dos meus traços considerados indígenas, mesmo eu nunca tendo afirmado ser indigena, mas sim uma mulher negra, mesmo que eu tenha essa herança familiar indigena. Eu vivo ser uma mulher negra, fui ensinada a me afirmar e é o que sou e ser o que sou enquanto uma mulher negra vem acompanhada de muitas dores atuais e ancestrais.
É ter meu trabalho sempre sendo colocado em cheque por pessoas brancas. É ter o meu trabalho sendo plagiado por uma pessoa branca e ser chamada de louca, de raivosa, enquanto a pessoa branca ganhou um monte de seguidores e sempre conseguiu trabalho, enquanto os primeiros trabalhos que fui ter na minha área de formação foram fora do Amapá, porque aqui nunca nem cheguei perto de ter uma oportunidade de emprego na minha área, somente trabalhos tidos como subalternizados, de babá, de vendedora e nas duas vezes ter sofrido racismo, ter escutado que uma pessoa como eu nunca teria outras oportunidades, bom, eu tive, mas pra conseguir cada uma delas eu sinto que deixei arrancarem partes de mim, porque enquanto pessoas brancas são convidadas a estarem nos lugares, eu preciso provar que mereço “ocupar” de formas mil vezes melhores que a pessoa branca.
É eu ter medo de realizar um dos maiores sonhos da vida, ser mãe, por medo das violências que meu filho venha sofrer por ser uma pessoa negra, enquanto mulheres brancas se alegram tranquilamente de suas decisões de ser ou não mães.
É cortar um dobrado para todos os dias dizer para mim mesma que eu mereço ser amada, saber que o amor preto não é um pozinho mágico que automaticamente quando nos juntamos vai curar nossas feridas, pelo contrário, talvez ele nos deixe ainda mais expostos e vulneráveis, a gente lida com as nossas violências e tem que ver a pessoa que a gente ama ser violentada também.
É ver nosso povo sendo assassinado por quem devia nos proteger e não conseguir denunciar isso, porque por mais que gritemos, nossas vozes nunca são escutadas. Se a gente insistir, a gente perde o direito de viver, enlouquece no medo de tirarem as vidas de quem amamos ou abre mão do direito à dignidade, porque eles não irão parar de confundir um guarda chuva em nossas mãos com uma metralhadora e nos assassinarem por isso.
Estamos em luta e eu não darei passagem para impostor!
Deixo aqui os versos de Zé Manoel desta História tão Antiga quanto os minutos atuais da minha escrita e da sua leitura.
“...Quantas vezes nossas lágrimas secaram, mas no peito ainda havia dor e a gente se calou. Num país com armas apontadas, políticas ultrapassadas e olhares atravessados para nós. Houve um tempo em que a canção não impedia mais um jovem negro de morrer por conta da sua cor. Fecho os olhos e me lembro de uma história que me dá vontade de chorar, me dá vontade de chorar. Quando 80 tiros carregaram para sempre da mulher o seu marido, o seu melhor amigo, quando as armas de um estado genocida procuravam nossos filhos e roubavam seus futuros, suas vidas, houve um tempo triste em que os olhos não sabiam enxergar a nossa dor mas viam nossa cor… Uma história tão antiga em 2019, de uma civilização antiga de 2019…
Hoje vivo num futuro construído por meus pais. Ficam histórias e heranças, tesouros ancestrais, meu presente foi sonhado, muitos, muitos anos atrás, pela mão do povo negro, pela mão do povo indígena. Salve rei Xangô e seu reino, Terra de paz e justiça!”
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