Por Cleiton Rocha
Bairro do aeroporto – Porto Grande/AP.
Foto: Priscylla Resque
No dia 3 de novembro, à noite, o Estado do Amapá sofreu um apagão, todavia, em alguns bairros periféricos das cidades e nos distritos rurais o que seria algo comum e normalizado, transformou-se na maior crise humanitária na história do Amapá.
O apagão, dentro de uma pandemia, foi a face mais nefasta de uma política assentada na necropolítica. Da incompetência técnica e política para resolver uma crise energética – da elite oligárquica aos políticos eleitos todos incompetentes para administrar a coisa pública. O efeito dessa violência política foi o Estado ir da pobreza à miséria em poucos dias.
O apagão evidenciou problemas estruturais que vêm sendo denunciado há décadas: Falta de segurança energética (mesmo com três hidrelétricas em funcionamento) evidenciando outra política fracassada a ideia desenvolvimentista da Amazônia e um colonialismo interno a pleno vapor – um Estado de maioria negra jogada ao esquecimento dentro um crime humanitário. Falta de segurança alimentar e de acesso à água potável. Nas nossas ações pela cidade de Macapá, nas suas periferias boa parte dos moradores são provenientes do circuito de deslocamento de barcos das ilhas do Marajó de Breves ao Afuá. Em busca de ter acesso a direitos básicos, direito à vida, ir e vir, e ao trabalho em uma capital. Todavia, em seus caminhos e sonhos encontram nas pontes o esquecimento, a violência política, a violência policial, e o desemprego e aos idosos sequer conseguem sair das suas casas porque as pontes não apresentam as minhas condições de poder caminhar entre elas.
Aqui nos deparamos a uma política nefasta dentro da necropolítica, do qual tenho chamado de – tecnologias de sobrevivência. Sobreviver em meio ao inferno custa caro. O apagão fez com que as pessoas das periferias, dos quilombos e das áreas rurais do Estado, acionam-se todo um conjunto de práticas de sobrevivência, e isso custa caro, custa a vida. Como disse Joelma de Souza, moradora de Porto Grande, “a minha maior dor foi ter que enterrar comida estragada”, quando algumas pessoas perceberam que não seria possível conservar a comida por muito tempo, rapidamente, uma tecnologia de sobrevivência foi acionada – salgar a comida. Salgar a comida é uma técnica de preservação dos alimentos, justamente, em regiões e lugares onde a pobreza, falta de energia impede que a comida seja conservada por vários dias. Em uma cidade, onde parte dessas técnicas não é dominada por todos, evidenciou outro problema de saúde pública – a hipertensão. De acordo com um levantamento do Ministério da Saúde, em 2018 30 % da cidade de Macapá tinha problemas de hipertensão. Sendo que a hipertensão atinge em sua maioria a população negra. Dessa forma, o apagão empurrou as periferias à morte.
O apagão colocou um dilema ético e moral diante das famílias moradoras das periferias: A fome é imediata, e morrer torna-se evidente, a possibilidade de morrer pela covid é uma questão de incerteza fundada em um imaginário de uma projeção. Qual é a mais evidente? A fome!
Dentre várias tecnologias da morte, a fome é mais cruel, pois coloca em um dilema os pais, se tiver crianças isso fica mais difícil, a preocupação constante de como alimentar as suas crianças. Mas, de onde tirar recursos para poder comer? Sem trabalho, sem o sistema de banco funcionando, e os preços dos produtos disparou nos dias do apagão, sendo agravada anteriormente pela inflação. O que fazer diante do desespero e da fome iminente? Por isso, radicalizar é necessário, não se negocia o direito de viver, não se negocia a liberdade.
A periferia negra entra em evidência organizando e tocando fogo pela cidade simultaneamente. Em uma das nossas ações pelos quilombos, voltando para cidade de Macapá, na BR 156 várias pessoas tocaram fogo na estrada, os quilombolas na ilha redonda, auto-organizados, incentivaram, mobilizaram, discursaram, e agiram para lutar pelos seus direitos. Essa manifestação ou mesmo uma inovação política colocam na sua centralidade a inteligência da negritude, colocam na centralidade sua auto-organização e capacidade crítica de agir. Sabiam que rapidamente o Estado estaria ali para intervir, no escuro, colocaram fogo somente em uma parte da avenida – uma mulher negra quilombola foi chamada pela polícia rodoviária para negociar, logo, em seguida a energia voltou.
As manifestações e revoltas que iniciaram nas periferias começaram a ser puxadas também para o centro da cidade com os privilégios de no centro a polícia se colocar para “proteger” os manifestantes, e durante as manifestações no centro realmente não houve registros de abuso policial, enquanto nas periferias o BOPE chegou atirando, ameaçando e chamando de bandidos famílias que suplicavam por energia, alimentos e água.
Manifestação no bairro Jardim 1 em Macapá, mesmo com o rodizio os moradores estavam há mais 48h sem energia. Foram reprimidos com balas de borracha e ações do Bope.
Foto: Rudja Santos
Faz nos perceber todo um conjunto de mortes iminentes, mas para fazermos qualquer coisa que seja da ideia de revolução a manifestações, como sugerida, por uma galera intelectualizada e branca da esquerda da cidade de Macapá, em um momento circunstancial de crime humanitário, onde as pessoas estão passando fome, é onde temos errado como leitura da realidade. Ninguém pensa com fome, ninguém tem ânimo para lutar onde sua mente está em alimentar os seus filhos. Todavia, algo aconteceu quando essa esquerda branca engessada sai de campo.
Ao mesmo tempo, na crise (crime) humanitária, no meio de um conjunto de práticas de sobrevivência, a mais poderosa emergiu, a solidariedade negra, a sensibilidade com outro, nas noites no escuro as pessoas na frente das suas casas para conversar e dialogar, rir no escuro, ao mesmo tempo um conjunto de compartilhamento de matérias e de comida para que o grupo possa continuar sobrevivendo, e visitar outras pessoas que não conseguiram sobreviver por si sós. Da solidariedade negra à auto-organização negra a luta fluiu em meio ao caos do apagão. O que seríamos capazes de fazer se todos os nossos tivessem o direito à vida digna e o direito de comer e ter água potável?
Baixada Pará em Macapá.
Foto: Cleiton Rocha
A libertação da população negra amapaense e do mundo, parte necessariamente, de superarmos a tecnologia de sobrevivência, essa forma colonial e racismo de manter o seu poder sobre os nossos, superar a sobrevivência, e passar a viver será um passo importante de dar condições materiais, políticas, emocionais, espirituais, e intelectuais de destruir essa máquina de devastação que é o racismo, a colonização e o capitalismo.
Colônia do Matapi – Zona Rural.
Foto: Cleiton Rocha
O nós por nós é uma forma ancestral de luta e inovação política, que parte da substância, de colocar os nossos em primeiro lugar, da auto percepção política da realidade a auto associação de organização política da população negra periférica ao quilombo. A partir do momento que conseguimos superar a tecnologia de sobrevivência, e reconectar a ponte entre a periferia e o quilombo, conseguimos produzir a arma mais poderosa para guerra – a união entre os nossos.
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